Uma morte por amor – Aplausos para Ezequiel
Foi o que pensei e senti na noite de 4 de Março quando nós, os 9 concelebrantes, juntamente com o Bispo da Diocese de Ji-Paraná, fazíamos o nosso ingresso na Igreja matriz da Sagrada Família de Cacoal, repleta de fiéis, reunidos por ocasião do encerramento da fase diocesana do processo sobre o martírio do Pe. Ezequiel.
Antes de deixar o Brasil, renunciando a um desejo, penso, razoável e legítimo, como é o de visitar Rio, a cidade maravilhosa com o seu Cristo do Corcovado, senti que podia resumir nestas palavras o que vivi neste ano e dois meses: a fase diocesana do inquérito do Pe. Ezequiel.
Foi com certeza uma graça de Deus, inesperada e que vai além daquilo que podia imaginar. Deus tem realmente sobre nós os seus desígnios e nada vale tentar acrescentar ou diminuir (querer mudar tais desígnios). Ele conhece tempos, proporciona encontros, coloca no nosso caminho pessoas, faz acontecer eventos não programados. Não só nos dirige, mas nos antecede por caminhos impensáveis no início da aventura, conduzindo-nos na nossa inconsciência e temor do desconhecido com pequenas doses de sabedoria e de luz que só, em seguida, reconhecemos como vindas d’Ele e mensageiras da sua presença.
Foi o que pensei e senti na noite de 4 de Março quando nós, os 9 concelebrantes, juntamente com o Bispo da Diocese de Ji-Paraná, fazíamos o nosso ingresso na Igreja matriz da Sagrada Família de Cacoal, repleta de fiéis, reunidos por ocasião do encerramento da fase diocesana do processo sobre o martírio do Pe. Ezequiel.
Emoção ainda mais forte, experimentada na altura do ato penitencial e da procissão das oferendas, ao ver duas mulheres avançar no corredor central: uma, jovem Roziene Silva de Castro dos Santos, de 32 anos, coordenadora da comunidade Pe. Ezequiel de Rondolândia, e a outra, Geni Lopes de Castro, de 81 anos de idade, sustentada pela filha. Ao ver a Roziene, com Romilson da Luz Nogueira, outro coordenador da comunidade Pe. Ezequiel, levar ao altar uma faixa de pano vermelho e um vaso repleto da terra onde foi assassinado Pe. Ezequiel, e a senhora Geni, apesar dos seus anos, partilhar com evidente orgulho o peso de uma das caixas com os documentos recolhidos, associei imediatamente aquilo que ela me tinha dito em sua casa: «Eu acredito que no lugar onde o Pe. Ezequiel foi morto haverá muita cura ali. Naquele lugar haverá um templo grande, de muita luz e cura sobre o povo. Virão muitos ônibus em peregrinação de muitas partes para visitar o lugar e receberão muitas graças de Deus pela intercessão do Pe. Ezequiel. Ele é um padre muito amoroso, carinhoso, e acolhia muito os pobres e pequenos e trabalhava pelos fracos».
Uma visionária o uma vidente? Reparai os verbos: a visão do que poderá vir a ser é ao futuro, mas coloca a figura do Ezequiel no presente: «Ele é um padre muito amoroso, carinhoso». Podia falar assim a Jeni Lopes de Castro porque tinha sido testemunha da cura de um seu neto. «O meu neto – contava – estava todo inchado. A doutora falou chorando: “peçam a Deus porque eu acabei de perder uma outra jovem com a mesma doença”. Eu disse para o pai dele que estava chorando: “Coloque o seu filho nos braços do Pe. Ezequiel porque ele vai trazê-lo de volta.” Eu pedi ao Pe. Ezequiel: “Desmancha isso que impede que o rim dele possa funcionar”. Eu disse para a minha filha que o médico não iria curar, seria somente a oração. Eu pedi a intercessão do Pe. Ezequiel junto a Deus e fomos atendidos. Ele se salvou pela intercessão do Pe. Ezequiel». Crença milagreira ou fé?
Os riscos de um processo como este, aqui, no Brasil
No rosto destas duas mulheres percebi os desafios que Deus tinha posto diante de nós.
Desafios internos ao grupo comboniano e tensões internas de um ambiente não favorável ao processo. Tudo parecia um sonho arriscado e irrealizável quando iniciámos no ano de 2000. Lembro as primeiras respostas dos formadores interpelados: o questionamento da figura do Ezequiel; o refreado entusiasmo de quem considerava isto bastante difícil, ou a obstinação do silêncio, quando não a indiferença, ou a persistente acusa de estarmos em presença de um imprudente e desobediente, um sonhador sem os pés no chão. Lembro a dificuldade de obter uma resposta da parte dos confrades do Brasil e a luz improvisa que veio depois do lançamento do Inquérito. Permanecia no entanto uma dúvida acerca da oportunidade e da existência de provas contundentes sobre o martírio. Também a Igreja local de Ji-Paraná, juntamente a ambientes combonianos, tinha suspeitas sobre a credibilidade da única testemunha ocular e sobre a consistente fama de martírio. Não posso esquecer a solidão e o silêncio sofridos no Centro Diocesano de Formação de Ji-Paraná onde, sozinho, perguntava a mim mesmo como começar o Processo, onde encontrar as pessoas do tribunal, enquanto que, lá fora, o Carnaval atingia o seu auge. No entanto, conseguimos iniciar, no dia 1 de abril de 2016. Deus tinha realmente os seus desígnios.
Desafio das distâncias
Só quem conhece o Brasil e a sua imensidão geográfica pode compreender o que significa concentrar testemunhas, historiadores e teólogos, vindos de distâncias consideráveis, de Ji-Paraná. Tínhamos testemunhas de várias partes do Brasil: do Maranhão, do Espírito Santo, de São Paulo, da Bahia. Só considerando o trajeto em linha reta mete medo. De Balsas (MA) até Porto Velho são 2000 km; de São Paulo a Porto Velho outros 3000 km; de Salvador (BA) a Porto Velho quase 4000 km, etc. Se depois acrescentarmos as viagens de avião com as diversas escalas, os quilómetros aumentam vertiginosamente. Por exemplo: os historiadores e teólogos em São Paulo deverão se deslocar duas vezes, ida e volta a Ji-Paraná, portanto mais de 12.000 km. E no entanto as testemunhas se deslocaram e foram ouvidas e os teólogos e os historiadores apresentaram os seus votos. Do alto alguém velou e voou junto com eles.
Desafio das pessoas: testemunhas e peritos
Dificuldades de juntar pessoas de todas as camadas sociais e religiosas: desde bispos até ao simples cristão da roça ou ao índio da reserva. Toda gente que depois de trinta anos nem sempre tinha permanecido no mesmo lugar: Rondônia é conhecida pela extrema mobilidade da população, especialmente os mais pobres. No entanto, as testemunhas mais significativas (73 ao todo) foram ouvidas em tempos e horas que as vezes desafiaram a sorte e a ousadia da inconsciência. Os indígenas, por exemplo, tiveram que ser contatados no momento, esperando na proteção e ajuda da providência. Mais que o tele mato, valeu a ajuda daquele que controla benignamente os humanos do alto. E no entanto, encontrámo-los todos e com alguma agradável surpresa. Um, se apresentou espontaneamente, e descobri depois ser um Suruí significativo no seu povo. Mesma coisa, quase, em relação aos peritos. Procurávamos qualidade e renome para obter votos que pudessem constituir base segura. Dois teólogos e um historiador, dos mais conhecidos e preparados não só no Brasil, mas também no estrangeiro, se disponibilizaram convictamente para este trabalho de avaliação que exigia tempo e concentração. Também outros dois historiadores, particularmente conhecedores da história sócio-religiosa da Rondônia, aceitaram o íngreme trabalho. Ezequiel teve a honra de ser avaliado por cinco doutores, coisa não muito frequente aqui no Brasil. Nesta nossa escolha juntou-se o conhecimento do valor dos escolhidos, a também boa dose de inconsciência de quem carrega onerosos pesos sobre ombros já largamente sobrecarregados. No entanto aceitaram, cumpriram e satisfizeram as nossas expectativas. Última, mas não menor satisfação, foi poder provar a autenticidade e a confiança que merecia a única testemunha ocular. Diante de toda a assembleia reunida, foi possível na noite de 4 de Março restituir o bom nome a uma pessoa que, durante anos, foi injustamente acusada der ser o companheiro traidor do pe. Ezequiel, na sua última viagem. Podemos dizer que todas as testemunhas, contrárias e favoráveis foram chamadas. Quem não apareceu, daqui em diante terá que assumir a responsabilidade das suas afirmações, tendo a consciência de se ter furtado a uma confrontação séria e livre de qualquer preconceito.
O desafio dos procedimentos
Estes processos implicam estritas formalidades, como um tribunal competente e atento para que seja garantida objetividade, seriedade, avaliação eclesial, inteireza e plenitude de informação testemunhal e documental. Aqui também, tocamos com mão a intervenção de uma vontade superior. A Congregação da Causa dos Santos aceitou, pela penúria de padres diocesanos da Diocese de Ji-Paraná, que um dos nossos padres pudesse ser nomeado Delegado Episcopal. Fato mais único que raro.
Desafio dos tempos
Às vezes fazemos planos que, apesar da nossa férrea determinação, devem ser continuamente mudados e com isso, quanto maiores forem as mudanças, tanto mais aumentam as dúvidas de uma rápida e certa conclusão. Aqui também aconteceu de dever postergar as datas que pareciam certas e razoáveis: não uma mas quatro vezes. O primeiro encerramento estava previsto para a semana anterior ao meu regresso à Itália, marcado para o dia 24 de Maio de 2016. Porém, não foi possível. Marcámos portanto, como data inderrogável, o 27 de Setembro de 2016. Mais uma vez, impossível. Agora, a flexibilidade cultural sugeria outra data, dia 27 de Outubro. Pouco a pouco estávamos entrando nos tempos escatológicos: de 27 de Outubro outra mudança para o dia 11 de Dezembro. O menino, nem pelo Natal conseguiu nascer. Não havia outra alternativa: postergar o encerramento para o novo ano de 2017. Finalmente foi marcado, como data inadiável, o dia 4 de Março de 2017. Apesar dos últimos solavancos, o 4 de Março, às 7.30 da noite, os concelebrantes com o Bispo entraram na aula da Igreja Matriz de Cacoal, repleta de fiéis. Parecia um sonho, mas era realidade! As 12 caixas do processo seriam levadas, no momento do ofertório, junto ao altar!
Desafio dos conteúdos
Este processo teve que enfrentar outro não pequeno desafio: chamá-lo-ei o desfio dos conteúdos. O Processo devia conseguir juntar provas documentais e testemunhais pelas quais aparecesse que a morte do Pe. Ezequiel foi verdadeiro martírio cristão e que a figura dele sintetizou quanto de melhor a Igreja brasileira dos anos de 70 a 90 tinha expresso na suas opções e na sua pastoral. Entravam temas candentes de Eclesiologia (do Vaticano II a Medellin e Puebla), de Cristologia (o Jesus histórico: a sua Pessoa e a sua prática inseparáveis), de Pastoral (estruturação da Igreja através das CEBs e capacidade de assumir profeticamente causas sociais, isto é os problemas dramáticos da terra e dos povos indígenas) etc. E de fato, parece que as 5.000 páginas de documentos, contendo depoimentos de testemunhas oculares e de documentos da Igreja latino americana, fornecem sólidas bases de prova. Os conteúdos, de resto, falam por si da atualidade desta causa.
Portanto na noite do 4 de Março, na Igreja de Cacoal não entravam simplesmente pessoas que tinham tornado possível o processo ou 12 caixas de documentos, mas era a Igreja viva, confessante e comprometida a entrar e a tornar significativo e sagrado aquele lugar. Pessoalmente, sentia interiormente uma grande paz e uma intensa emoção de agradecimento em relação àquele Deus que nos tinha guiado a todos e, muitas vezes, surpreendido.
A herança de Ezequiel
Parece-me de poder utilizar esta palavra para exprimir o conteúdo do testemunho que o Ezequiel nos deixa. As linhas muito sintéticas que vão aparecer, correspondem à parte final de uma longa introdução que tive de fazer antes da cerimónia da clausura propriamente dita. Era necessária para que a assembleia pudesse perceber o significado daquilo que iria acontecer. Caso contrário, teriam assistido a uma série de juramentos, assinaturas e a um veloz movimento de papéis e carimbos sob o olhar fiscal do Postulador. Confesso que depois de ter lido e comentado as quase dez páginas da relação e portanto de ter um pouco abusado da paciência da assembleia, fui tentado de deixar este últimos pensamentos, que aqui transcrevo. De resto, Deus nosso Senhor tinha-me passado uma extrema rasteira para me fazer compreender que era Ele o sujeito e o protagonista de tudo o que estava a acontecer. Tinha perdido os meus óculos e inutilmente os tinha procurado. Sem óculos, estava perdido! Tive que os subtrair ao bispo que continuava olhando para mim, um pouco preocupado. Mesmo não perfeitamente, dava porém para ler. Era por isso que estava tentado a concluir sem ler aquilo que tinha intitulado: «O que nos ensina a figura do Ezequiel». Poucas palavras que sintetizam o pensamento e a vida do Pe. Ezequiel. Armei-me de coragem e conclui:
Evangelizar, levar Boa Nova, tem o seu preço e só o pode fazer quem aceita de amar sem condições e colocar o bem do outro acima do seu próprio bem.
Não se evangeliza, se não se ama.
Não se ama, sem a vontade de participar numa obra comum «Apesar de algumas divergências, dizia D. Antônio do pe. Ezequiel, chegávamos sempre a boas conclusões».
Não se ama, se não se valoriza a cada um, segundo o seu dom e a sua competência.
Não se ama, sem uma espiritualidade (o que Pe. Ezequiel escrevia, afirmava e pregava vinha de uma Palavra de Deus aprofundada na oração e mergulhada nos desafios da vida).
Não se ama, se não se levam a protagonismo as pessoas.
Não se ama, se não se arrisca e não se é capaz de fazer a opção pelos mais pobres e injustiçados para se poder chegar a dialogar com todos, sem hipocrisias.
Não se ama, sem um espirito positivo e de esperança (o Pe. Ezequiel era o seu sorriso).
Não se ama, se não se entra num projeto eclesial comum (Ezequiel, jovem missionário, inserido no mais vivo do programa eclesial da Igreja do Brasil dos anos 70-90).
Não se ama, se não se conhece a fundo a realidade.
Não se ama, se não se age.
Não se ama, se não se está disponível a ir até o fim, até o dom da própria vida, se Deus e o bem do povo o requerem. Amém.
Pronunciado o “Amém”, vi uma assembleia levantar-se em peso e aplaudir longamente e convictamente. Foi imediata a minha reação: este aplauso não me pertencia. Era a «standing ovation» para Ezequiel e o seu ato heroico de amor pelos mais pequenos e injustiçados!
E agora estamos nós em causa! Em causa está a nossa vida, as nossas opções e as nossas atitudes. O desafio, que foi dele, continua em cada um de nós e nas nossas comunidades combonianas!
Cacoal (RO), Igreja Matriz de Sagrada Família, 4 de Março de 2017