
“Uma virtude simulada é uma impiedade duplicada: à malícia une-se a falsidade”
Numa profunda reflexão sobre a hipocrisia denunciada por Jesus (Mt 23,13,22), os padres jesuítas Silvano Fausti e Filippo Clerici dizem que existem, pelo menos, duas maneiras de praticar o mal. A primeira é a transgressão daquilo que é justo e certo. Este é o jeito mais comum e mais fácil de identificar as coisas erradas. Todas as vezes que descumprimos a Lei e, com nossos gestos e palavras, ocasionamos sofrimento aos outros, fazemos o “mal”. Quando nos damos conta de nossos erros, procuramos pedir perdão e buscamos a conversão. Mas há outra maneira de praticar o mal, mais difícil de captar, pois é mais sútil. Vem disfarçada de observância religiosa e revestida de aparente rigor moral. É a violência do orgulho religioso que leva a desprezar as outras manifestações religiosas, do proselitismo agressivo para aumentar o prestígio da própria igreja, da obsessão pelo poder, do terrorismo espiritual, da manipulação das consciências fragilizadas, das formas sutis de controle, do narcisismo que investe tudo na própria imagem do que que serviço ao projeto de Deus, da imposição de fardos esmagadores que os pregadores nem sequer tocam com um dedo, da extorsão de dinheiro para ganhar o céu, da preocupação mais pelo ouro do que pelo próprio templo e pela oferta mais do que pelo altar, da coerção sexual e de muitos outros abusos religiosos que ocasionam traumas nos/as fiéis. Trata-se de um pecado muito mais grave do que as transgressões, pois esmaga os outros com aquela arrogância religiosa que se torna pura violência, mas tão “sagrada”, tão bem justificada que as pessoas não percebem que é violência. É uma violência facilmente confundida com zelo religioso, como acontecia com Saulo, fariseu cheio de zelo, que perseguia os cristãos achando que estava defendendo Deus. Toda manifestação religiosa que desanda para a violência é hipocrisia. Toda observância da Lei que não está estritamente ligada ao exercício da misericórdia se torna tirania. Toda exigência que não leva em consideração a compreensão é uma manifestação perversa de legalismo. Toda moral que não preza pelo cuidado com a vida é falso moralismo de quem prega, mas não faz ou, pior ainda, cria uma moral de circunstância que muda a segunda de seus interesses ou daqueles que fazem parte da restrita cerca de seus amigos. A hipocrisia, a arrogância religiosa, o legalismo e o moralismo podem até arrebanhar muitos prosélitos, mas fazem deles não filhos e filhas de Deus, mas duplicados dos/as filhos/as da Geena, isto é, nossos escravos/as e não pessoas livres (Pe. Silvano Fausti e Pe. Filippo Clerici). É por isso que Jesus está angustiado. Suas palavras duras, longe de ser uma ameaça, são manifestação de seu sofrimento diante de posturas que desumanizam o ser humano. Elas não fazem parte somente do universo religioso dos fariseus e escribas, mas também das comunidades cristãs. É por isso que o Evangelista Mateus faz questão de reproduzir este discurso de Jesus para ajudar a sua comunidade e as nossas a superar tudo aquilo que nos desvia do caminho do Reino, sobretudo o escândalo da dupla cara do narcisismo religioso. Sant’Agostinho, cuja memória celebramos hoje, ao falar da hipocrisia, dizia: “Uma virtude simulada é uma impiedade duplicada: à malícia une-se a falsidade.”
(pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano)