Herdeiros do carisma missionário de S. Daniel Comboni, que dedicou a sua vida para que os povos da África tivessem vida em abundância, os Missionários Combonianos no Brasil têm como uma das prioridades de evangelização os povos afrodescendentes, comprometendo-se com a causa afro, sobretudo, através da comunidade comboniana de Salvador, onde funciona o CENPAH. Muito axé!
O CENPAH (Centro de Pastoral Afro Heitor Frisotti) é um espaço de agregação de diversas iniciativas, no âmbito cultural, inter-religioso, de luta contra o racismo, para a igualdade e a promoção dos direitos humanos, valorizando a iniciativa dos leigos/as, acompanhando e assessorando os diversos processos propostos nessas dimensões.
A seguir, apresentamos duas matérias: a) Entrevista com o Pe. Jurandyr, coordenador nacional da Pastoral Afro e b) História do trabalho realizado pelos Missionários Combonianos em Salvador neste âmbito.
A) Entrevista com o Pe. Jurandyr Azevedo Araújo
O pe. Bernardino Mossi (BM), comboniano, entrevistou recentemente o Pe. Jurandyr. Temos gosto em apresentar aqui na íntegra o texto, para conhecer o caminho feito e também apontar perspetivas e desafios para as comunidades e a igreja, hoje e no futuro. Nossa profunda gratidão ao Pe. Jurandyr pelo seu tempo e disponibilidade!
BM: Como nasceu a Pastoral afro-brasileira?
Pe. Jurandyr: A Pastoral afro-brasileira nasceu de um grito, em 1978, numa missa em São Paulo. Padre Toninho (Antonio Ramos do Prado) ao final da missa gritou: “Vamos iniciar a pastoral?” Pouco depois foram convocados quatro padres pela CNBB para poder dar sugestões para a conferência de Puebla. E aí esse grupo continuou se reunindo. Em 1982 iniciou a secretaria da pastoral afro na sede em Brasília. Essa Pastoral começou a se organizar. A secretaria, da CRB Nacional doou os móveis e a irmã Raimunda da Congregação Jesus Crucificado ficou como secretária.
Ela constituiu um grupo, incluindo irmãs e padres, para começar a pensar nisso. Pe. Enes de Jesus foi convidado, em 1986, para o ser primeiro Coordenador da Pastoral Afro-brasileira. Como ele estava em São Paulo, não pôde vir para assumir e assim, no ano seguinte, fui convidado e comecei a organizar a Secretaria da Pastoral Afro-brasileira. Começamos de zero. Justamente em 1987 já se iniciava o processo para a celebração de 100 anos da abolição. E então foi proposto este tema para a campanha da fraternidade em 1988. Essa Campanha da Fraternidade foi organizada pela Pastoral. Fizemos um texto base e passamos em muitas dioceses conversando sobre isso. O ano de 1988 foi um marco para a Pastoral Afro-brasileira. A partir de 1988 começou essa organização. Então desde 1988 fiquei lá durante 8 anos. Depois assumiu a pastoral o Pe. Ari dos Reis que ficou 4 anos. Em seguida fui convidado a voltar. Portanto eu fiquei praticamente 14-15 anos na Pastoral organizando-a e, sobretudo, articulando em nível nacional. Mais informações…
BM: Que trabalho foi feito durante esses anos e o que se faz nessa pastoral hoje?
Pe. Jurandyr: A Pastoral é para dar uma consciência sobre a diversidade cultural, sobre a presença do negro desde o início da nossa pátria e as consequências da escravidão (que durou 400 anos) e também dentro da Igreja e as questões da religiosidade popular do povo negro. O que a Pastoral faz é no sentido de articular os grupos. Podemos dizer que no Brasil existe a Pastoral em todas as dioceses, sendo que muitos grupos não estão ligados à Igreja pela dificuldade de bispos, sacerdotes ou religiosos aceitarem essa Pastoral, mas ela existe e as vezes os grupos são bem organizados. Os demais são organizados e orientados pela própria pastoral.
Cada um tem seu trabalho específico com a comunidade negra e hoje estamos desenvolvendo já um trabalho com os Quilombos. Foi feito um subsídio de estudo número 45, sobre a Igreja e os Quilombos. Estamos trabalhando nisso. Estamos organizando o IX Encontro da Pastoral Afro-brasileira (IX Conenc). Temos parceria com outros grupos, por exemplo, os Agentes de Pastoral Negro (APNs), o Instituto Mariama, que congrega Bispos, Padres e Diáconos negros.
Podemos dizer que há sempre ume relação com esses grupos não só da Igreja, como também, da sociedade civil. A Pastoral Afro-brasileira tem procurado fazer subsídios de formação e a cada Congresso Nacional, que se realiza a cada três anos, nós fazemos um subsídio com temas próprios para a ocasião. Uma diocese se encarrega para organizar cada congresso. Durante dois anos preparamos todo o material e toda a organização. Outro aspecto onde atuamos são as Romarias. Estamos na 21ª Romaria. A Romaria acontece todos os anos em Aparecida no primeiro sábado do mês de novembro para que tenhamos a consciência que todo mês de novembro, é o mês da consciência negra.
Nesse ano é a diocese de Mogi das Cruzes que está preparando a Romaria e o tema é “Escravos ontem, escravos hoje também na Igreja”. O trabalho pode ser lento, mas é um trabalho de base. Sobretudo a partir de 2015, no segundo Congresso Nacional, estamos preparando lideranças, e essas lideranças estão atuando em cada Estado, em cada Comunidade e Diocese. Esse é o grande trabalho hoje de lideranças. Também o próximo Congresso vai ser em janeiro 2018, na Arquidiocese de Maringá (PR). Estamos preparando para que outras lideranças participem. É um trabalho que vai continuando no sentido de uma perspectiva de abertura.
BM: Quanto tempo e senhor ficou na pastoral e como o senhor se sente hoje?
Pe. Jurandyr: Comecei após minha ordenação sacerdotal, em 1973, no Rio de Janeiro a participar do MNU para tomar consciência da minha negritude, porque na minha formação dentro da Congregação eu era branco ou pardo; não era negro. Fui tomando consciência, sobretudo depois que trabalhei 8 anos em Angola. Ali tomei mais consciência. Ao voltar em 1983, comecei a participar do grupo “União Consciência Negra” que era da Igreja. E aí comecei em 1987 esse trabalho. São mais de 14-15 anos nesse trabalho. E nós estávamos, até 2015, na Sede da CNBB.
Tínhamos a secretaria lá e era muito importante como aspecto pedagógico para que a gente pudesse também ajudar todas as pastorais das igrejas a repensar as suas práticas com a relação ao povo afro brasileiro. Mas em 2015, nós fomos convidados a sair da Sede como também as outras pastorais. Viemos para Belo Horizonte onde estamos com a Sede trabalhando e articulando ainda esse trabalho pastoral. E na última assembleia no mês passado, em Aparecida, na reunião dos bispos da Pastoral Afro, eles decidiram sair daqui de Belo Horizonte e ir para São Paulo. Aqui tinha um sacerdote sendo preparado para isso: Pe. Fernando José da Silva. O bispo auxiliar Dom Eduardo vai assumir essa Pastoral e o Pe. José Henri é que vai interinamente assumir a Pastoral. Porque estou realmente deixando essa pastoral pelo tempo e acho importante a mudança. Portanto eu e o Pe. Fernando daremos continuidade a essa pastoral até o fim do ano em algumas tarefas que iniciamos.
BM: O senhor pode nos falar dos desafios e perspectivas para o futuro?
Pe. Jurandyr: Os desafios vêm da sociedade por isso temos que conscientizá-la das riquezas e dos valores das culturas afro-brasileiras. Porque ainda no Brasil existe racismo. Então é preciso trabalhar. Ora a Igreja está dentro da sociedade e assim precisamos também trabalhar na Igreja porque há muitos leigos e leigas, sacerdotes, bispos e religiosos que ainda não aceitam a Pastoral Afro-brasileira por causa da questão do branqueamento que existe até hoje. Isso porque o padrão da sociedade e da Igreja é o padrão do branco e o negro sempre é tido como inferior, o negro não sabe, o negro não é capaz, o negro não trabalha direito. Todos esses preconceitos existem. Portanto a grande questão é a discriminação e isso é o grande desafio. Segundo desafio é o diálogo inter-religioso.
Nós temos então as religiões de matrizes africanas: o Candomblé que nasceu na África, veio para o Brasil e foi readaptado aqui; o Umbanda que nasceu no Brasil, em Niterói, é uma junção do espiritismo com as religiões de matrizes africanas e indígenas; a Quimbanda, um grupo menor que é uma junção da Umbanda e do Candomblé. Portanto as pessoas têm muitos preconceitos, sobretudo muitos grupos da Igreja, movimentos que acham que não é uma religião, mas coisas do demônio. Não é verdade; é uma religião como outras. Por exemplo Candomblé tem suas tradições, seus livros, cultos, sacerdotes e sacerdotisas…. Então é uma organização inclusive tem um instituto de teologia do Candomblé. Portanto estamos nesse trabalho que podemos chamar de inicial. Além disso há o aspecto da dupla pertença. Porque até hoje essas religiões de matrizes africanas não são aceitas e são perseguidas; hoje ainda algumas igrejas perseguem essas religiões. Temos que trabalhar bastante nesse sentido.
A Pastoral Afro-brasileira está dando bastante consciência nos encontros como também nos vários textos que publicamos. Sobre isso nós temos, a pedido do Vaticano, dois grupos de reflexão, Cristianismo, Candomblé e Umbanda. São pessoas que estão refletindo há mais de 4 anos em São Paulo, Belo Horizonte. Inicialmente começamos na Bahia. Temos a intenção de escrever a nossa experiência para que a gente possa ajudar no entendimento da comunidade católica sobre os valores dessas religiões. O próprio Papa já disse que todas as religiões são boas, salvam. Portanto é preciso que a gente compreenda que: quanto mais valorizo a minha religião, mais compreendo a do outro.
B) Presença missionária comboniana em Salvador
A presença comboniana em Salvador, BA, começou em março de 1980 com os Padres Franco Vialetto e João Munari assumindo duas paróquias em dois bairros periféricos densamente povoados com cerca de 70 mil habitantes na maioria afrodescendentes, provenientes do êxodo rural causado pelas situações de precariedade e pobreza dos interiores da Bahia.
Em Outubro de 1981, no centenário da morte do fundador Daniel Comboni, foi assinado o primeiro convênio com a Arquidiocese de São Salvador da Bahia, no qual o Instituto dos Combonianos destinaria uma equipe de 3 sacerdotes, que juntamente aos compromissos pastorais nas 2 paróquias, assumiriam também o “dedicar parte do seu tempo ao estudo das temáticas da vida dos afro-brasileiros” para servir melhor o povo na maioria negros e também ajudar os demais Combonianos presentes no Brasil na reflexão de uma pastoral evangelizadora inculturada! A equipe de missionários soube integrar o estudo das temáticas em relação à vida dos afro brasileiros através da prática pastoral, na reflexão biblica, nas liturgias inculturadas e sobretudo no diálogo inter religioso com as religiões de matriz africana! Nesta linha, se destacou a atividade missionária de Padre Heitor Frisotti, que visitava os terreiros, onde era estimado e conhecido em toda a cidade de Salvador.
Com o crescimento demográfico nestes bairros, foi vista a necessidade de entregar uma parte da paróquia de Pau da Lima. Em 1998, foi constituída a Paróquia dedicada a S. Daniel Comboni abrangendo os bairros da grande Sussuarana com a necessidade de estruturar melhor a vida pastoral das 11 comunidades. A comunidade Comboniana, além do cuidado pastoral, catequese, preparação sacramental, liturgia, movimentos sociais, deveria colaborar com a Arquidiocese no surgimento e acompanhamento das Cebs, favorecendo a formação de líderes cristãos no meio popular tanto a nível religioso quanto social e engajando em pastorais especificas (juventude, menores, afro …)!
Viver em compromisso de solidariedade com a população afro, que em Salvador constitui cerca de 75% e que nos bairros de periferia pode chegar de 85% a 90%, enfrentando os problemas provindos da marginalização dos negros pela sociedade elitista, aprofundando os estudos bíblicos, teológicos e pastorais numa aproximação à vida, à cultura e religiões de matriz africana para um autêntico diálogo inter religioso e uma inculturação do Evangelho.
Depois do falecimento do padre Heitor, foi amadurecendo a necessidade de se ter um Centro de Pastoral Afro. Os Padres Ferdinando e Fidele, dedicados mais especificamente aos trabalhos e estudos da pastoral Afro, fundaram a casa do Cenpah (Centro de Pastoral Afro Heitor Frisotti) e ajudaram a nascer a Pastoral Afro na Arquidiocese de Salvador. Com a realização do VIII EPA (Encontro de Pastoral Afro a nível do Continente Americano) a linha de trabalho foi a formação dos APNs nas Dioceses e paróquias, a organização do CAAPA (Centro de Pastoral Afro da Arquidiocese).
O Cenpah, com a riqueza de livros deixados por Heitor, formou uma Biblioteca que leva o seu nome. No mesmo Cenpah foi criado o Salão Santa Bakita e a aposta foi na questão educacional, oferecendo aos jovens negros da periferia a possibilidade de se prepararem para o vestibular e assim poderem ingressar no ensino superior. Nesta linha social não foi esquecida a oferta de cursinhos e oficinas de cultura afro para lideranças das comunidades e a capacitação étnica para professores das escolas. O desenvolvimento do Cenpah foi ainda na linha cultural e na aposta literária, dando vez e voz aos Jovens. Por meio da poesia são abordadas as problemáticas da vida, da história, da cultura, da religião e da sociedade que tanto descriminaram o povo negro. Sempre se teve em vista a superação.
Tem-se apostado na questão histórica e racial por meio de cursos de Direitos Humanos e Racismo. Também tem-se desenvolvido um trabalho de defesa e promoção da vida e dos Direitos Humanos pela criação da Instituição Cedhu (Centro de Direitos Humanos Pe. Franco Pelegrini), que funciona no Cenpah.