
Meninas, sonhos, violações e resistências: histórias da Pombagira, Philomena e Clara
Por Patrícia Teixeira Santos*
Na trajetória da sociedade brasileira, trago aqui as histórias de uma menina, uma adolescente e uma jovem.
1. Pombagira Menina: o sonho de infância roubado
A primeira é imortalizada nos cantos sagrados das religiões afro brasileiras: a Pombagira, ser do sagrado feminino profundamente ligada à energia vital, à alegria de viver, à fertilidade e ao fluir da beleza sensual feliz. No caso aqui, iremos nos referir a Pombagira Menina.
Alguns cantos sagrados para ela lembram sua alegria de ser criança e sua infância roubada, pelo estupro realizado pelo pai. No canto que segue, ela diz que vai sozinha para o Cabaré. Sua mãe não acreditou nela quando relatou a violência, e para lá foi, vivenciando a amargura de uma infância e alegria interrompidas por um adulto que a “usa”.
“Eu sei que ainda não sou menina.
E nunca quero ser mulher.
Comigo só brincava criança.
E eu sozinha fui pro Cabaré.
Meu pai me usou quando eu era menina.
Minha mãe não minha palavra não crêu.
E hoje vou perambulando.
Na Rua da Amargura e você não vê.”
(Ponto para Pombagira Menina “Eu sei que ainda não sou mulher”)
Segue o link do canto interpretado por Ogã Igor:
https://youtu.be/NY1RFmm0A7Q?si=Z1H8CEvghm0E5P-2
Essa menina sofrida e que conta sua história faz parte também do panteão ancestral que funda este país. Assim como ela, incontáveis meninas ao longo da história social brasileira na República e mesmo antes, se viram mães de seus meio irmãos, ou grávidas de parentes e pessoas mais velhas que as “usaram” como se canta no canto da Pombagira Menina.
Elas e suas histórias de sofrimento marcam nossas vidas e as religiões afro vêem nelas nossas ancestrais que nos doam sua força amorosa para termos saúde e plenitude, transcendendo o sofrimento que lhes roubou tanto de suas vidas.
Depois de olhar a dor da Pombagira Menina que foi obrigada a deixar de ser criança, encontramos no Catolicismo vivenciado pelas populações pobres e pelos escravizados, o culto a Santa Philomena.
2. Santa Philomena: a resistência de uma menina
A Santa adolescente foi martirizada por se recusar a ser “usada” pelo Imperador Diocleciano, no início do Cristianismo. Ao ser pedida para ser amante do Imperador, e não encontrando no seu pai o apoio que necessitava, a pequena Philomena foi firme no seu não, porque dizia que “era menina e queria crescer”.
Essa frase atribuída à jovem mostra a resistência de tantas meninas que lutam para poderem viver em plenitude. Seu nome foi dado a muitas meninas negras e brancas porque além de ser um sinal da preservação da pureza, como se dizia em outros tempos, era a protetora contra os males da violência deste mundo, e particularmente dos adultos que só queriam “usá-las”.
3. Clara dos Anjos: menina para ser usada
Entre as jovens negras que a literatura nos trouxe com tanta força, destaco aqui a figura de Clara dos Anjos, da obra de Lima Barreto.
A moça virtuosa e inocente da trama de Barreto, passa por uma insidiosa situação de sedução e de ser “usada” pelo seu namorado, o Cassy Jones, que era o personagem que representava a elite branca ascendente das grandes cidades do Brasil nos primeiros 40 anos do século XX, mas que trazia a chaga do racismo na sua relação com Clara e a sua intenção de usar da jovem. Mesmo gostando dela, ela já de início era considerada uma “moça que não era para casar”.
Conclusão: Nossas lutas hoje
Essas histórias expressas nas nossas experiências religiosas, sociais e literárias nos mostram como tem havido um clamor para a denúncia do abuso e estupro das meninas. De como veio de longe a luta pela dignidade das nossas crianças. E como ainda hoje, o direito à cidadania sobre o próprio corpo de meninas, adolescentes e jovens é uma das mais aguerridas lutas contra a sombra da escravidão e do uso dos corpos dos mais pobres, para o oportunismo egoísta e predador de quem tem autoridade e poder, ou se julga superior na força e no controle da violência.
A questão da PL 1904 precisa fazer reavivar em nós a velha força das nossas ancestrais de luta e garra, para podermos “crescer” como disse a adolescente Philomena diante do temível Diocleciano. Hoje este personagem temível se expressa em muitos rostos, corpos e em diferentes tipos de exercício da autoridade. Mas, a luta pela dignidade de todas as mulheres nos leva a uma transcendência no combate ao abuso, à violência sexual, de modo a salvaguadarmos o direito de que todas as meninas, para poderem ser crianças, como a Pombagira menina queria ser com sua alegria.
Patrícia é Professora de História da África
Departamento de História – Unifesp